domingo, 26 de dezembro de 2010

Os "dotô" e o "fessô"

Uma visita a um hospital pode ser um importante meio para destruir qualquer vestígio que se tenha de ego. E nem precisa ser um hospital público. Fica-se lá, por horas, esperando ser atendido. E quando isso acontece, algum sujeito, às vezes com a pouca paciência de quem está ali cumprindo período de residência, não exita em dar o diagnóstico: virose. Ou algo do tipo. E ainda querem que nós o chamemos de “doutor”.
Outra cena: você é um atendente no comércio. Fica ali, tentando vender suas mercadorias para ganhar comissões que ajudem a, no fim do mês, ter um vencimento digno. Aí, por algum erro que não diz respeito a você, algum produto dá problema. Chega o cliente para reclamar e você argumenta de acordo com as normas da loja. Então, o indivíduo sentencia: eu sou advogado, conheço de leis, você TEM que fazer o que estou dizendo. Timidamente, você obedece. Ah, esses sujeitos também querem ser chamados de “doutores”.
Por fim, uma última cena. Você é professor, trabalha com adolescentes no ensino público. Esforça-se para cumprir o cronograma, uma tarefa árdua. Segue as normas que seu patrão, o Estado, manda. No fim do ano, precisa avaliar seus alunos, aprovar aqueles que apreenderam o mínimo de conteúdo. E um daqueles que não o fizeram chega para você e diz: “se eu não passar de ano, quebro a sua cara!” Na melhor das hipóteses, nessa cena, você será chamado de “fessô”. Quando não for por algum termo não reproduzível aqui.
As diferenças entre esses indivíduos extrapolam o nome como são chamados. Passam pelos concursos públicos, que pagam, naturalmente, até cinco vezes mais para os dois primeiros do que o último profissional citado. O status também é diferente, toda família quer ter um “doutor”, mas certamente não um “doutor em educação”. Mas, antes disso, deveria prevalecer a semelhança: os três são graduados e desempenham funções, no limite, com a mesma importância. Pois se alguém pensa que o trabalho braçal de um cirurgião ou o domínio da retórica jurídica vale mais do que a difusão de cultura, eu sugeriria pensar como a sua vida seria mais difícil sem nenhuma instrução.
Mas, infelizmente, nossa sociedade gosta de práticas sado-masoquistas. Tem essas camadas sociais que adoram arrotar soberba, violentando os outros com o valor que pensam ter. E muitas vezes formaram em faculdades de esquina, beberam boa parte do curso e, como profissionais, só irão perpetuar seus preconceitos de classe como “contribuição” para a humanidade. Por outro lado, existem aqueles que gostam de estar por baixo, de sofrer as humilhações e de ter pena de si mesmo. Se os professores se valorizassem mais, saberiam de seu poder e não aceitariam seu lugar de “coitados” da sociedade.
Nada é mais repugnante do que tomar como naturais esses tipos de desigualdades, que no final, são somente forjadas. E, numa boa, quem quiser ser chamado de doutor por mim, precisa ter doutorado. Beleza?

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O segredo, à sete chaves, de Minas

No livro “O Segredo de Minas”, o historiador Amílcar Martins Filho desenvolve a tese de que o poder de Minas Gerais na República Velha se daria pela habilidade de seus políticos desenvolverem articulações e atuarem independente de interesses econômicos. Através de diversos dados e tabelas, o autor demonstra que a característica do político mineiro é a facilidade em negociar.
Hoje, certamente as negociações continuam presentes. Mas o segredo para o sucesso de nossos mais aclamados políticos parace ser outro: o segredo, mesmo. Depois de gestões instáveis no governo do estado, com Eduardo Azeredo e Itamar Franco, Aécio Neves inaugurou uma era tucana em Minas Gerais que parece cada vez mais próxima de uma total aprovação popular. E, afinal, qual o motivo de tanto sucesso? O neto de Tancredo foi tão bom governador assim, para ser fundamental nas eleições de Márcio Lacerda, na prefeitura da capital, Antônio Anastásia, no executivo do estado, e da coligação para o senado, dele próprio com o octogenário Itamar?
É muito fácil encontrar pelas ruas os defensores da gestão de Aécio Neves e de seus derivados, mas é complicado encontrar quem argumente o porquê da defesa. Fala-se no “choque de gestão”, manobra administrativa que equilibrou as contas do estado. Porém, não se esclarece que essa foi uma artimanha que englobou receitas. como as do Ipsemg. para dar “efeito azul” nas contas mineiras. Diz-se da educação, que agora tem nove anos no ensino fundamental. Entretanto, fica esquecido que se trata da oficialização do já existente pré-escolar como um ano letivo. Estufa-se o peito para enumerar as obras que minam a capital mineira, mesmo que uma chuva deixe tudo mais caótico do que ficava antes. Sem falar que o transporte coletivo urbano continua refém das empresas de ônibus...
Mas em Minas, o que não é positivo sobre o governo fica em sigilo. Inúmeras manifestações populares, como de professores e outros funcionários públicos, são ignoradas pela imprensa. Nesse exato momento, diversas famílias estão sendo desalojadas e tal operação é feita no maior silêncio. Produz-se o mito do bom governador, neto do presidente da redemocratização, que emula a habilidade de Juscelino Kubitscheck e tem a imagem moderna de Oscar Niemeyer. E não sobra espaço para questionamentos.
Porque, acima de tudo, a mídia em Minas Gerais é fraca. Em vez de compor com Rio e São Paulo uma “trinca do poder” no Brasil, a imprensa aqui prefere tratar o estado com ar provinciano. Nada crítica, tampouco independente, fica conivente ao “mito Aécio”.
E, se a mídia é inoperante, o marketing em torno do agora senador eleito é o inverso. Aproveita do ar jovial do político e apaga os aspectos controversos de sua personalidade. Assim, mesmo as denúncias sobre aqueles supostos hábitos de Aécio, nada aceitáveis para um político, não ganham força diante da tamanha exaltação de sua figura. Se o jornalismo aqui fosse sério, ele já teria sido confrontado sobre esses boatos, mesmo que para negá-los.
Dessa maneira, resta a conclusão de que o atual segredo de Minas não é nada político e segue a lógica estética da maquiagem: com algum pó-de-arroz ficam escondidos o que não se quer mostrar e, com outros produtos, são realçados o que vai parecer bonito na foto. Nessa lógica, estão garantidos mais alguns anos de PSDB no governo de MG. E também a certeza de quê, nos próximos anos, o “mito Aécio” vai expandir-se nacionalmente. Tentarão transformar o Brasil em Minas Gerais.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Notas sobre o fim do armagedon

Enfim, o fim. Terminou o combate eleitoral e, enquanto muitos já comemoram o espaço da propaganda eleitoral devolvido às tvs, é importante observar o que enxergamos com o baixar da poeira. Poeira quase similar a de um conflito nuclear. E que expõe ruínas. Essas eleições precisam ser lembradas, até para termos a esperança que algo similar não mais ocorra. Pois um debate político como o que tivemos precisa ser repudiado por todos.
Não mais podemos tolerar a mobilização de temas religiosos, obscurantistas e de caráter preconceituoso sendo utilizados numa eleição. A candidata eleita sofreu a oposição mais sem fundamentos desde 1989. Quantas vezes não ouvimos alguém dizer que não votaria nela por ser “ex guerrilheira das FARC”, “matar criancinhas”, ser “ditadora antidemocrática”, “incapaz”, ou, simplesmente, por “não ir com a cara dela”? Enquanto houver argumentos assim, não adianta reclamar dos rumos da administração pública. O primeiro a ser displicente com o Estado é o eleitor sem embasamento.
Houve também as críticas contra a corrupção do PT. Críticas muito bem vindas. É bom observar que não há mais espaço o slogan de Maluf, de “rouba, mas faz”. A corrupção, falha humana observada em qualquer repartição pública ou na primeira “oportunidade para fazer o ladrão”, não pode ser tomada sem revolta. Mas tenho pena do eleitor que pensou que a troca da legenda na presidência, substituir PT por PSDB, resolveria algo. Tucanos no governo são um perigo ainda maior de corrupção, afinal a imprensa a vê com mais tolerância quando praticada por gente de quem ela gosta.
Porque, sim, a imprensa é tão passional quanto militantes partidários. Merece uma gargalhada todo momento em que jornalistas se apresentem como neutros. Não são. Os órgãos de imprensa representam interesses, os seus próprios. Não há ética do jornalismo que dispute com a meta de um jornal ser o maior do país, um canal de tv ter a predominância no horário nobre, e, em todos, de se tornar a vitrine mais valiosa aos anunciantes. São órgãos controlados por poucas famílias e que, ao inflamar discursos pela liberdade de imprensa, estão defendendo a liberdade de poucos definirem no que você vai acreditar. Infelizmente, ainda há aqueles que, para se legitimar, citam Diogo Mainardi ou Arnaldo Jabour.
Os mesmos argumentos acima podem ser aplicados às igrejas que atuaram como cabos eleitorais. Predomina o sentimento de retrocesso, já que o Estado brasileiro é laico já há mais de dois séculos. Que padres e pastores tratem de encomendar seus rebanhos ao céu e livrar-se (eles próprios, principalmente) do inferno! Que construam seus imponentes templos, já que encontram quem os financie; que continuem alimentando sua burocracia interna. Se eles forem convincentes em seu discurso, não terão problemas com “desvios cristãos” dos brasileiros, como no caso do aborto. Afinal, foi justamente o candidato “bom moço religioso” cuja esposa “matou criancinha”, ou feto, como melhor entenderem.
A corrida eleitoral precisa ser transparente. Atualmente, as propagandas políticas são alternâncias de ataques aos adversários, gráficos de “quantas casas vamos construir” e hipotéticos aumentos do salário mínimo. O PSDB não fala da quedinha deles por privatizações, por exemplo.
Também vale destaque a impressionante votação da candidata Marina Silva, do PV. Mostrou algo importante, que é um bom número de eleitores que quer mais do que duas opções. Porém, também revela um infantil sentimento de ser “do contra”. Pessoas seduzidas pela bandeira pop do momento, a sustentabilidade (não fizeram um festival de música com esse mote?) e que, por ela, não foram críticos o suficiente para perceber a ausência de propostas sólidas na candidatura do PV.
Por fim, a vitória da Dilma. A opção da maioria pela manutenção das políticas que vem funcionando economicamente e proporcionado mais dignidade para a vida de brasileiros miseráveis. Pois o Brasil está, sim, mudando. Sem falsas ilusões, mas é preciso observar que nossa história de séculos de riquezas acumuladas por uma minoria pode ser menos brutal daqui para frente. Quando filhinhos de papai tucanos aparecem desferindo comentários preconceituosos aos nordestinos (onde Dilma teve expressiva votação), é justamente esse conflito que transparece. Imbecis que já tem de tudo ridicularizando aqueles que votam para ter um mínimo.
É isso, amigos, o que está em jogo nas eleições. Não é qual o candidato mais beato, o mais bonito ou o mais tranqüilo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A farsa nas mil faces de José Serra

É importante que o pescador venda seu peixe. Entretanto, ele não pode vendê-lo por gato, lebre, ou qualquer outra coisa que não seja o animal oferecido. Nessas eleições, a campanha política atingiu um nível absurdo de embate imagético. Os candidatos são vestidos conforme apura-se ser bem quisto junto ao público. Ao lado de Aécio Neves, os panfletos tentaram colocar Anastasia como um irmão gêmeo do ex-governador. Dilma, sabidamente mulher de posturas rígidas, ganhou face sorridente, amável. E o estafe de Serra tentou dar ao candidato tucano um carisma que é contrário à sua natureza. Até avatar em 3D o tucano ganhou.
Em nossa república presidencial, o poder ganha uma falsa personificação na figura dos presidentes. Votamos em nomes que, na verdade, trazem todo um direcionamento partidário, que governará de fato. A figura que aparece na urna eletrônica ao digitamos o número da legenda é só cara, a ponta do iceberg.
E os marketeiros sabem disso. Assim, apelam. Ao fim da campanha eleitoral, os candidatos já apareceram com tantas caras, expostas exaustivamente na mídia, que não conheceremos de fato o nosso futuro presidente.
Sem dúvida, o candidato mais maquiado do pleito eleitoral é José Serra. Porque ganhar eleição significa conquistar votos entre as classes mais maltratadas economicamente e o programa de governo tucano/ DEM não é favorável às massas. Ele agrada, em sua essência, os setores mais ricos da população, que tendem a enriquecer ainda mais em governos do PSDB. Agrada aos investidores de capital especulativo (aquelas aves de rapina à procura de mercados financeiros de lucro fácil) que há pouco estavam eufóricos com a possibilidade de virada serrista.
Afinal, o liberalismo defendido pela direita não interessa ao trabalhador cuja situação social irregular ficaria ainda mais exposta sem o auxílio do Estado. É preciso falsear. Aos populares, planos de construção de moradias, ensino técnico e geração de emprego insinuam uma bonança com a vitória de Serra. Mas essas promessas não superam a concretude do governo Lula e sua continuidade como melhor opção.
Não bastando a ocultação da verdadeira face de sua proposta de governo, a José Serra foram sobrepostas inúmeras máscaras. A de religioso, defensor da vida e da família, antiprivatizações, verdadeiro continuador do governo Lula... Máscaras inconsistentes com o “peixe” que oferecem. Como no caso da legalização do aborto: o político que se mostra contra o “crime” apoiou que a esposa o cometesse na juventude?
Agora, está exposta a manipulação em prol da vitimização do candidato, devido ao atentado à sua careca, cruelmente arranhada por uma bolinha de papel. Enjôo (coincidentemente sentido depois de uma ligação), necessidade de tomografia e atestado para 24 h de repouso. Turbinada pela imprensa direitista, a imagem de Serra é a de vítima dos inescrupulosos e agressivos petistas. Farsa digna do ex-goleiro chileno Rojas. Se a campanha durasse mais algumas semanas, não duvido que o candidato ainda subiria em palanque acompanhado de Tiririca, para cantar “Florentina”.
A verdade é que as propostas de governo da aliança PSDB/ DEM só são interessantes, de fato, à minoria que os financia – e a imprensa que levanta veladamente, mas cada vez mais escandalosamente, sua bandeira. Se fizessem uma campanha realmente transparente, não teriam chance, pois poucos trabalhadores votariam em candidato do patrão. Daí, o fenômeno #Serramilcaras, ocultando face realista assustadora desse governo de direita paulista que se pretende expandir ao país.
É importante que o pescador venda habilmente seu peixe. Só é injusto ele não alertar ao comprador que essa carne está infestada de espinhos.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Política brasileira: pior do que tá, fica?

No dia seguinte às últimas eleições, o nome que mais repercutiu foi o de Tiririca, palhaço que se tornou hit nos anos 90 com a canção “Florentina”. Mostrando-se totalmente como piada, zombando da sua falta de preparo, o comediante foi o deputado federal mais votado no Brasil. Muitas foram as vozes indignadas com a enorme votação de Tiririca, chocadas com o despreparo e irresponsabilidade dos eleitores brasileiros. Nesse blog, porém, faremos uma leitura alternativa desse fenômeno.
Na Grécia, a democracia era direta, os cidadãos iam deliberar em praça pública pelos seus interesses. Mas a democracia era o regime político de Atenas, uma cidade-Estado, como fazer esse processo em países de imensa população como o Brasil? Diante dessa necessidade surge a democracia representativa, onde o cidadão escolhe aquele que irá representá-lo no poder político. Por que, afinal, uma pessoa escolhe um palhaço para representá-la na federação (a câmara dos deputados é isso, representação do poder do povo)?
Diz-se que foi voto de protesto. Para alguns poucos, sim, eu acredito. Mas não para a maioria. E não foi por achar o candidato capacitado que ele foi votado, pois este mesmo afirmava: “não sei o que um deputado federal faz, mas vota em mim que eu te conto”. Acredito que o voto em Tiririca foi por identificação. Os eleitores reconheciam aquele sujeito.
Os outros? O político virou um estereótipo. Rostos envelhecidos, cabelos com laquê, os inseparáveis ternos, os discursos vagos... Não é difícil encontrar uma centena de candidatos que se encaixem nessa discrição. Os políticos não são “gente nossa”, são, praticamente, uma categoria humana à parte.
Além disso, a política se esconde do povo. As votações de deputados e senadores estão longe de ser assunto difundido pela sociedade (alguém aí assiste a TV Câmara ou a TV Senado?) Os eleitos vão para sua “Disneylândia particular”, caso de Brasília e do Centro Administrativo, em Minas Gerais. Lá, brincam de trabalhar de terça à quinta, gozam de benefícios inimagináveis ao trabalhador comum e, no fim do ano, votam o seu aumento salarial. Deliberam sobre o país bem de longe, em seu universo próprio, atendendo aos interesses que nem sempre batem com o da grande população.
Lamentavelmente, a população não é politizada. Nem é criada para tal. Nas escolas, sequer aprendemos as particularidades e funções dos poderes políticos. A política só vira assunto debatido em larga escala nas eleições, quando toda sua complexidade é resumida na oposição de partidos – ou, no caso atual, em polêmicas religiosas, morais e outras pequenezas que passam longe de conter o real exercício do poder.
Mas o eleitor não é burro. E votar no Tiririca pode surgir como um meio de escolher uma alternativa dentre outras múmias engravatadas que só se tornam acessíveis em períodos eleitoreiros. E quem sabe o palhaço não volta e explica mesmo qual é a função do deputado federal?

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A CNBB e a legalização do aborto entram nas eleições

A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) Regional Sul 1 resolveu participar das eleições. Nos últimos dias, recomendou ampla divulgação de um panfleto, intitulado “Apelo a todos os brasileiros e brasileiras”, em que conclama a todos a “votar bem”.

O teor do texto deixa claro o que tal organização considera o bom voto. Embasado em supostas evidências de um aparelhamento do atual governo (e de sua candidata) pela legalização do aborto, a CNBB deixa, bem explícito em suas entrelinhas, que apóia o candidato Serra, da aliança DEM/ PSDB.

É importante ressaltar que eu, particularmente, sou contra o aborto. Porém, questiono qual é a propriedade que a igreja tem para tratar de política nesse momento. A legalização do aborto é UM tema que o governo pode tratar, mas estamos falando do futuro do país. Outros aspectos precisam ser levados em conta.

Será que a CNBB – Regional Sul tem consciência do quão importante é a eleição presidencial? Porque, ao pedir voto para um candidato tomando como argumento SOMENTE a legalização do aborto, os bispos parecem ignorar a complexidade de uma administração federal. Se não entendem da função do governo, imagino que não deveriam, pois, se intrometer.

Trocar a sigla no governo federal, do PT para o PSDB, não é mudar “daqueles que não respeitam os valores cristãos” para “aqueles que respeitam”. Afinal, a análise da grande contribuição do governo Lula ao país, que foi a implementação de políticas voltadas aos setores da população abaixo da linha da miséria, percebe-se uma preocupação com os “irmãos mais pobres”. Não é preciso ser um grande conhecedor da Bíblia para saber que ela trata bastante disso.

Por outro lado, relacionar o PSDB com “valores cristãos” pode ser errôneo. Lembremos que nos tempos em que Fernando Henrique Cardoso foi presidente, o aumento das desigualdades sociais foi flagrante. Significa que, mais do que poucos enriquecendo absurdamente, milhões em condições de extrema miséria. As privatizações, nesse sentido, também não foram nada cristãs, passando para o capital estrangeiro (por preços irrisórios) bens nacionais. “Não roubarás” está nos mandamentos descobertos por Moisés.

Tão grave quanto esse posicionamento claramente parcial da CNBB é seu embasamento exclusivo na legalização do aborto. Porque, ainda ilegal, o aborto é facilmente praticado. Seja pagando determinado montante de dinheiro em clínicas clandestinas, tomando “beberagens” ou fumando compulsivamente, o aborto é acessível a toda mulher que o desejar. Se ele é praticado, falta, sim, amor aos valores cristãos e à vida em gestação – independente da legalização ou não do ato. Os valores cristãos são responsabilidades da educação religiosa, desempenhada pelos catequistas, padres e bispos. Nesse sentido, é uma falha da religião a prática do aborto, uma vez que ela não convence seus fiéis a seguir seus mandamentos.

Não nos esqueçamos que o Estado brasileiro é laico e deve assegurar liberdade para os cidadãos terem suas crenças e religiões, sejam elas quais for, e nada mais. É comum criticarmos o Irã por suas leis que, em nome do Alcorão, desrespeitam os direitos humanos. Ora, se a federação brasileira se guiar pelas normas do catolicismo (ou do protestantismo) teremos aqui outro estado fundamentalista. Os nossos apedrejados serão os homossexuais, os praticantes de candomblé, os que utilizam métodos anticoncepcionais, os divorciados e tantos outros que não se enquadram no texto (e na interpretação oficial) da Bíblia.

Tem-se a noção, nesse texto, de que a Igreja Católica é formada por diversas correntes e, no limite, diversos indivíduos. O que não pode ser admitido é que setores tão de direita utilizem a autoridade religiosa para tratar de assuntos políticos, tão exteriores a ela. Vem bem fácil à mente outras ocasiões em que a setores da Igreja tomaram partido de determinadas correntes políticas: apoiando ditaduras pela América Latina, governos autoritários na Europa e fazendo vista grossa ao extermínio de judeus pelo nazismo, para citar alguns exemplos. Mesmo um envolvimento religioso positivo na política, quando padres, sob a luz da teologia da libertação, batalharam contra a opressão de povos no mundo subdesenvolvido, foi eliminado pelo Vaticano.

É preciso que a legalização ou não do aborto seja discutida, mas não com finalidade eleitoreira. Não é um governo que destruirá os “valores cristãos”. Mas estes, por sua vez, podem destruir a seriedade do debate político.

Carta ao Editorial da Folha de S. Paulo (27/09/2010)

Prezado editorial da Folha,

Chega a ser comovente a nota publicada por vocês na primeira página do jornal de ontem, 27 de setembro do corrente ano. Faz-nos lamentar pelos questionamentos e acusações lançados pelo governo federal e pela candidata do PT sobre o idoneidade do periódico. E, por outro lado, alegra-nos por ter um órgão de imprensa batalhando por nós, população civil, tão distante do poder e, na mesma proporção, afetados pelas decisões governamentais.

Um belo discurso. Porém, não correspondendo à verdade, perde qualquer valor de beleza e torna-se cínico.

Vocês se dizem de orientação “independente, plural e apartidária”. Pois vejamos. Apartidarismo significaria que vocês não teriam preferências nesse pleito eleitoral. Significa que vocês seriam tão críticos às candidaturas de tucanos e petistas. Que investigariam inconsistências e falhas administrativas em gestões de ambos partidos com o mesmo destaque.

Ora, não é o que presenciamos. Sempre que há um ataque ao governo do PT tal nota ocupa a primeira página da Folha, geralmente com um texto confuso que deixe evidente uma possível “culpa da Dilma”. Já o governo de São Paulo, há quase duas décadas nas mãos de peessedebistas, segue imaculado. As notas negativas, quando surgem, ocupam páginas de destaque inferior. Aliás, a referida nota alerta para o risco de “enfraquecimento do sistema de freios e contrapesos que protege as liberdades públicas e o direito ao dissenso quando se formam ondas eleitorais avassaladoras, ainda que passageiras”. Segundo vocês, é aí que a “imprensa independente” se faz necessária, sendo combativa. Acredito que as sucessivas vitórias tucanas no governo paulista e prefeitura paulistana configurem essa “onda eleitoral avassaladora” (lembrando que o atual prefeito do DEM só escancara as profundas raízes de direita liberal nesse estado). E onde estão os questionamentos do jornalismo crítico estadual? No âmbito regional vocês fazem vista grossa? Em Minas Gerais, Aécio Neves tem grau de aprovação talvez superior ao do governo Lula. Também vai se mostrando um excelente cabo eleitoral. Novamente, a Folha trata tal evento com a seriedade que diz ter “apartidariamente”?

Não deixa de ser curioso o jornal referir-se à Dilma como a “candidata oficial”. Ser a candidata do partido atualmente no governo não faz dela mais oficial do que os outros. Serra e Marina Silva, por acaso, são clandestinos? São nessas pequenas operações que observamos o quão apartidários vocês não são.

Isso para não falar das grandes operações. No dia 13 do presente mês, a ombudsman chamou atenção para a onda anti-Dilma do jornal, apelando para denúncias como chamá-la de má administradora por, em algum momento de sua vida, ter tido uma loja que não obteve sucesso. O que não passou despercebido por uma legião de tuiteiros que, tenham certeza, não necessariamente são militantes petistas. Cada vez mais fica difícil acreditar nessa “Folha imparcial”.

A pluralidade pode até ser alegada com razão pelo jornal. Afinal, são tantas as vozes nele que, se nenhuma destoasse, o periódico seria declaradamente um panfleto de direita. Interessante, entretanto, seria uma pluralidade com iguais espaços para todas as partes representadas. Não é o que vemos e o dito acima serve de argumento.

Mas vocês se dizem independentes. Pois, e a receita de anúncios publicitários, não dependem dela? Se não, gostaria de ver o jornal circulando limpo de anunciantes, aumentaria o espaço para textos críticos ou diminuiriam as páginas, o que seria um bem ao meio ambiente. Aliás, não satisfeitos em vender espaços para marcas comerciais, vocês também aceitam candidatos políticos como anunciantes. Nas mesmas páginas que se julgam imparciais na análise do pleito eleitoral, vemos candidatos que podem pagar pelo espaço, entre eles bizarrices como Ricardo Salles. Este, diz-se único “jovem candidato assumidamente de direita liberal no cenário político brasileiro”. Negrita como título um “Chega de PT” e, ao apontar as mazelas que pretende combater, responsabiliza “o Polvo no Poder” por elas. Trocadilho infame que faz referência a Lula, mas, sonoramente, aponta também para o “povo no poder”.

A Folha é um grande órgão de imprensa, conta com um respeitável patrimônio, o mesmo se estendendo aos que a dirigem. Manter essa posição e até mesmo crescer, diretrizes de toda empresa, faz necessário alianças, numa postura que colabore nesse sentido. Vocês não são independentes pois, no mínimo, estão atrelados a essa visão empresarial que, inclusive, pode ser favorecida por determinadas correntes que cheguem ao poder. Independente, prezado editorial, sou eu: pobre, estudante, que não estou ganhando centavo algum para enviar-lhes esse email. Pelo contrário, estou abdicando de um tempo que seria investido em estudos.

Fazer jornalismo crítico é, sim, importante. Denunciar irregularidades é um grande serviço que o jornal faz à comunidade. Só que não vale fazer isso num sistema de pesos e medidas irregular. Tampouco empenhar-se em investigações comprometedoras somente em períodos chaves de disputas eleitorais. O patrimonialismo, presente no caso Erenice, é uma chaga nacional que remonta à era colonial. Deve ser combatido em todas as esferas políticas, do gabinete presidencial à repartição pública de bairro. E em todas as gestões. O quanto a Folha tem averiguado se o governo tucano de São Paulo é realmente imaculado? Se encontrasse algo, qual seria o destaque?

Eu poderia mencionar a comparação ridícula feita por Clóvis Rossi, também no último domingo, entre as eleições brasileiras e venezuelanas. Aliás, o próprio corpo do texto não colaborou com o título sensacionalista. Se estivéssemos na Venezuela, prezados editores, a Folha já seria estatal, pois lá estariam, há muito, enquadrados como golpistas. São realidades diferentes, não há como comparar.

Encerro meu email lembrando que, se o discurso da nota editorial de ontem não for cínico, então algum Anel de Nibelungos possuiu o corpo editorial da Folha. Pois o dito ali não corresponde à postura do jornal. Lamento o teor crítico da minha mensagem, mas como você dizem atuar assim, acho que não vou ofendê-los. Seguramente não é minha vontade.

Atenciosamente,